Ontem Dia dos Pais, notei que não tinha uma foto com o meu, apenas fotos dele sozinho ou com outras pessoas. Refletindo, também percebi que não as tenho por razões menos tristes: timidez e dificuldade em superar comportamentos difíceis que se estabeleceram entre nós ao longo de sua existência.
Seu José, meu pai, desencarnou em 11 de maio de 2011, aos 73 anos. Nosso relacionamento não foi dos mais íntimos, tipo pai e filho carinhosos, que podiam contar um com o outro. Mas também não foi pautado por traumas ou grandes tragédias. Foi, digamos, “comum” dentro do contexto em que nasci, vivi e fui criado.
Filho de descendentes de italianos rígidos, meu pai herdou o sangue e a cultura de uma raça forte e destemida, incansável e progressista. Gente que literalmente pingou seu suor em nossas lavouras, que não teve acesso à educação e aos confortos de sua época justamente porque estava lavrando a terra para nós.
Rebobinando a fita do tempo e considerando todos esses detalhes tão diversos e importantes, concluo que meu pai não foi ruim comigo. Ele foi ele, do jeito que tinha que ser. E dentro desse contexto, obedecendo à sua cultura comportamental, nunca me deixou faltar nada. Teto, comida, roupa e doses de amor ministradas do seu “jeitão”.
Também não fui o melhor filho, o mais amoroso ou dedicado. Fui vivendo nessa linha, obedecendo aos comandos da “cinta” que ficava pendurada atrás da porta e, mais tarde, com receio e medo dos “pileques” que meu pai tomava, os quais se tornaram diários e acentuados depois que ele se aposentou.
Sim, o homem trabalhador, incansável, guerreiro e com nervos à flor dos ossos se rendia ao álcool justamente no “inverno da vida”, quando, no seu caso, poderia ter descansado mais, vivido mais tranquilamente… Minha mãe e amigos próximos que conviviam com meu pai diziam que um homem como o “Seu Zé” nunca poderia ter parado de trabalhar. “O tédio e a falta de ter o que fazer sempre foram péssimos companheiros, sobretudo a homens da estirpe da do seu pai”.
Era o que ouvia, de forma mais simples, claro, e o que concluí mais tarde, com a aceleração do alcoolismo, doença que conduziria meu pai à morte, não sem antes povoar nossa casa de gritos, tombos, lágrimas e noites sem fim…
Minha mãe foi quem mais sofreu com tudo isso. Sempre ao lado dele, absorvendo emocionalmente cada “copo de pinga”, cada ida dele ao bar (e muitas delas só tiveram voltas porque era ela quem o buscava). Sim, um drama cotidiano que se repete diariamente em milhões de lares ao redor do mundo. O álcool não é faca afiada, mas corta tão profundamente quanto. Pode reparar.
Nessa toada, fomos vivendo, tentando um cuidado especial ali, uma internação aqui, mas nada que Seu Zé aceitasse de forma definitiva. Dois dias sem beber, outros cinco passando mal, cheirando à pinga e caindo pela casa.
Nesse meio tempo, em 2007, me mudei para Rio Preto e minha amada e invencível mãe ficou com papai sob seu comando, fortalecida pela esperança – essa que nunca morre – de que “um dia desses ele entra no eixo e para de beber”.
Não parou. Concomitantemente à minha vida de jornalista que evoluía positivamente, recebia ligações diárias e relatos de cenas cada vez mais dolorosas. E assim foi até a madrugada fatídica do dia 11 de maio de 2011, quando meu sobrinho Eduardo acordou-me com a ligação certeira: “Tio, o vô morreu!”. Depois de um tombo na escada de casa, que dava acesso à rua, e cinco noites internado, Seu Zé perdia a luta para o álcool e nos deixava literalmente “só com pele e osso”.
Nessa altura dos fatos eu já não sentia nada em relação ao meu pai que não fosse pena. Também não havia mergulhado no processo de reflexão e maturidade que hoje uso para entender essas e outras situações da vida. Sim, a idade e a dor são duas bênçãos salutares, pode apostar.
Além de nos fazer rebobinar a fita do tempo, essa mistura de maturidade com a percepção de quem realmente somos nos proporciona outras visões e conclusões da vida. Os episódios até então não compreendidos – ou apenas amontoados nas gavetas da memória -, vão ganhando outras cores e dimensões, desenhando, no final, um quadro mais palatável, menos cinza. Conseguimos até pendurá-lo na parede da sala…
Tudo isso para dizer que a não publicação de uma foto com meu pai no feed do Instagram, neste domingo 11 de agosto de 2019, não me fez sentir-me menos ou mais filho dele. Pelo contrário, me fez descobrir que nossas melhores fotos estão guardadas num feed que aplicativo nenhum pode apagar. Um beijo carinhoso e toda minha gratidão a você, “Seu Zé”…
7 Comentários
Daniela Borghi
12 de agosto de 2019, 12:59h às 12:59Que lindo texto..tomado de muita emoção né? De muito realismo e coragem …
Pra nós q somos espíritas sabemos q nada acaba aqui …emane energias boas p ele …🙏
Deus te abençoe 😗
Blog do Beck
12 de agosto de 2019, 13:09h às 13:09assim seja, sempre!
Karina Moreira
12 de agosto de 2019, 14:08h às 14:08Texto incrível e reflexão muito madura, cheia de amor e compreensão. Parabéns, te amo!
Alexandra L. Da Silva
12 de agosto de 2019, 17:00h às 17:00Lindo! É apenas o que posso escrever. São poucos os que têm coragem de expor dessa forma. Como você mesmo escreveu, são muitos que passam por isso, mas agradeço por dividir conosco. Sei que o seu “Zé” tem muito orgulho do filho que ele deixou pra nós.
Blog do Beck
12 de agosto de 2019, 18:11h às 18:11Obrigado, querida!
Leonardo Concon
13 de agosto de 2019, 00:19h às 00:19Texto maravilhoso. Muito introspectivo e verdadeiro. Parabéns. Veio do coração e sem falsos sentimentalismos.
Blog do Beck
13 de agosto de 2019, 10:00h às 10:00Obrigado pela leitura, amigo!